A quem não importa perder renda e investimento?

A quem não importa perder renda e investimento?

Marcos Gouvêa de Souza —

Existe uma profunda transformação no mapa do consumo do mundo por conta do avanço do que pode ser caracterizado como “metaglobalização”, processo que envolve um nível sem precedentes de interconexão entre produtores, distribuidores, revendedores e os omniconsumidores.

Essa transformação está baseada no crescimento dos canais digitais de venda e distribuição de produtos e serviços entre países em escala global através do avanço do cross border.

Nos Estados Unidos, Ásia, Europa e Brasil, o sistema cresceu em volume físico e financeiro, e percebeu-se que alternativas criadas para atender a remessas individuais de consumidores para consumidores – peer-to-peer (P2P) – em bases unitárias passaram a ser usadas indevidamente para transações comerciais com corporações globais, usando esse artifício para burlar a taxação de importação, controle e transferência de produtos.

No Brasil esse tema suscitou profundas discussões entre os representantes dos setores formais da economia, em especial os produtores de bens de consumo, os serviços agregados e o varejo, pela inequidade competitiva, uma vez que a entrada descontrolada desses produtos, isentos de controle e taxação, concorria de forma desleal com o que é produzido e distribuído no País, ainda onerado pelos impostos e mais todos os controles criados para proteger o consumidor.

Como resultado, os produtos eram vendidos sem impostos e outros custos por não estarem sujeitos a todas as regulamentações envolvendo padrões, controles de qualidade e especificações técnicas dos produtos produzidos aqui e revendidos no mercado formal. Era a instituição da informalidade global com a condescendência estatal.

O aumento do volume dessas transações não tributadas em 2023 determinou quedas nas vendas e nos impostos recolhidos pela indústria local, pelos serviços associados e pelo varejo tradicional, e levou à redução de quadro de funcionários nesses setores, perda de renda pela diminuição de mão de obra nas categorias envolvidas e mais a redução de investimentos nesses setores.

Sem mencionar os problemas financeiros enfrentados por várias empresas, tanto na indústria quanto no varejo, incapazes de concorrer com a situação e num cenário de altas taxas de juros e crédito caro e limitado.

Importante lembrar que, no Brasil, o varejo tradicional, não exclusivamente digital, representa ainda perto de 90% de todos os negócios do setor, e que nos próximos dez anos deverá continuar a representar de 70% a 80% das vendas, porém cada vez mais combinando canais de vendas e distribuição, dentro dos conceitos de omnicanalidade.

Vale lembrar que entre os serviços associados ao varejo estão inclusos os veículos de comunicação, empresas financeiras e de meios de pagamentos, os negócios de logística e distribuição e mais todos os serviços integrados na cadeia de valor do consumo.

É importante registrar que o comércio e o varejo, nos seus diversos formatos de lojas, canais, categorias e modelos de negócio, ainda são os maiores empregadores privados do Brasil.

Estimulado pela perspectiva de aumento de arrecadação numa situação de evidente necessidade, o Ministério da Fazenda se envolveu e criou o Programa Remessa Conforme, impondo um maior nível de controle na verificação dessas entradas cross border e uma taxação de 17% de ICMS. Mas manteve a isenção da taxação do imposto de importação e criou a expectativa de que isso pudesse ser feito num futuro próximo.

Isso ainda não ocorreu e essa situação está mantida em evidente desigualdade competitiva, comprometendo o futuro desses segmentos, geração de empregos e desestimulando qualquer forma de investimento.

Nenhuma empresa, setor ou entidade pode ser contra a inevitável evolução desde que assegurada a igualdade competitiva, em especial na vertente tributária e de normas e regras de autuação.

O que num primeiro momento atingiu de forma mais direta os setores ligados à moda, confecção e calçados, gradativamente se expandiu para outros segmentos envolvendo ótica, artigos de uso e cuidados pessoais, bem-estar, eletroeletrônicos, papelaria e até material de acabamento e construção.

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No quadro atual esse benefício da isenção de imposto de importação e controles só é possível para quem remete do exterior para o mercado interno. Definitivamente são esses que não se importam com a perda de emprego, salários e investimentos no mercado interno.

E é essa situação competitiva desigual que tem sido valorizada de forma míope, ou com outros interesses, por quem vê as compras isentas de impostos e controles como um benefício imediato para consumidores mesmo que comprometendo o futuro desses setores.

O cross border é de fato um avanço nas relações de consumo no mundo, com muitos aspectos positivos que a indústria, as marcas e o próprio varejo devem considerar na expansão e modernização dos negócios levando produtos, conceitos e a imagem Brasil para o exterior.

Porém, é fundamental que exista equidade competitiva em todos os casos, de forma a assegurar regras justas e isonômicas para preservar emprego, renda e investimentos.

Sem isso, pode-se comprometer o futuro pelo devaneio do presente.

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Marcos Gouvêa de Souza é sócio-fundador da Gouvêa Ecosystem, membro do conselho do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) e do Instituto Foodservice Brasil (IFB), é moderador da iniciativa Projeto para a Nação

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 24/1/2024