Grandes redes montam ofensiva contra ‘marketplaces’ estrangeiros

Grandes redes montam ofensiva contra ‘marketplaces’ estrangeiros

As principais varejistas brasileiras organizam um movimento para combater “marketplaces” (shopping virtuais) que, na visão delas, vendem produtos falsificados ou sem a devida cobrança de impostos. O foco está nas empresas estrangeiras que trazem produtos da Ásia, apurou o Valor. As estrangeiras rebatem e já têm linhas de defesa para reagir à investida das brasileiras.

As reuniões sobre a questão vêm sendo lideradas pelo Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), que reúne 75 varejistas como Americanas, Casas Bahia, Magazine Luiza, Renner e Riachuelo. Na semana passada, houve encontro virtual com, pelo menos, 50 associadas para tratar do impacto fiscal da sonegação e discutir “propostas judiciais e administrativas” contra as plataformas estrangeiras, segundo documento do IDV apresentados na reunião.

Fontes afirmam que há um antigo incômodo das redes com grupos como AliExpress, da chinesa Alibaba, Shopee, do Sea Group, de Cingapura, as americanas Wish e Shein, Mercado Livre, sediado na Argentina, e a OLX Brasil, com 50% do negócio nas mãos da sul-africana Naspers. A decisão pela ofensiva partiu do avanço da operação desses grupos no país, dizem fontes.

O material, feito com apoio da consultoria McKinsey e do escritório Mattos Filho Advogados, e obtido pelo Valor, lista ações possíveis nas áreas concorrencial, tributária, criminal, das relações de consumo e do Marco Civil da internet.

O IDV avalia entrar nas próximas semanas com uma representação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), alegando infração à ordem econômica pelas plataformas estrangeiras.

Ainda neste mês, também deve ser pedida reunião com o Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça. A ideia é apresentar o estudo do IDV ao CNCP. “Já houve contatos com alto escalão do governo, informalmente, e com lideranças estaduais para ver se há espaço para trabalhar alteração em legislação sobre cobrança de impostos pelos ‘markeplaces’ “, diz o diretor de uma rede. O plano é começar pelo Cade e “depois entrar pela mudança na lei”.

Procurado, o IDV confirma que há um relatório sobre o tema da venda de lojistas internacionais, mas não comenta eventuais ações em desenvolvimento.

Uma fonte próxima ao IDV afirma que “apenas 5% das remessas foram fiscalizadas pela aduana em 2020 e 7% das remessas são efetivamente declaradas”, diz. “Ou seja, há um ‘mar’ de produtos que entram sem qualquer análise, e isso só aumentou após a pandemia”.

Gráfico mostra número de visitantes por mês em diversos marketplaces (Outubro 2021). R$ 161 bilhões foi o faturamento do comercio eletrônico brasileiro em 2021Fontes: SimilarWeb/BTG Pactual

“Como a compra de até US$ 50 é isenta de imposto de importação, lojistas informais ou pessoas físicas compram de outros informais, até esse limite de US$ 49,99 por pacote para fugir da fiscalização”, diz. “São milhares de pacotes, favorecidos pela oferta de frete grátis”.

Uma proposta em análise pelas redes é a emissão de nota fiscal, pelo microempreendedor individual (MEI), na venda para pessoa física. Isso só é obrigatório na venda para empresas, mas envolveria mudança na lei de micro e pequenas empresas. Outro caminho do IDV é trabalhar junto às assembleias legislativas estaduais para aprovar lei que atribui aos “marketplaces” a responsabilidade solidária por pendências fiscais de seus lojistas no pagamento do ICMS.

Alguns Estados já responsabilizam as plataformas, por meio de legislações específicas. As plataformas, por sua vez, rejeitam a responsabilidade solidária, alegando que são apenas intermediárias.

O texto em discussão pelas redes também propõe atuar na mudança no artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata de liberdade de expressão. Pelo artigo, um provedor de internet somente pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo de lojistas se, após ordem judicial, não tomar providências.

Para o IDV, o texto está sendo usado de forma distorcida para isentar os “marktplaces” da responsabilidade. Estes dizem que se trata de liberdade de expressão (de publicação de conteúdo).

Como é ano eleitoral, redes ligadas ao IDV disseram ao Valor que não há espaço agora para colocar toda a agenda na mesa dos governos federal e estadual. O caminho, então, seria endurecer a cobrança por maiores controles aduaneiros, e pressionar agências reguladoras com poder de autuar e multar empresas. Fonte próxima ao Ministério da Justiça diz que essas fiscalizações cresceram desde a pandemia, assim como a aproximação entre alguns sites e as agências, na busca de maior cooperação.

Há varejistas no país, que operam com seus marketplaces, e também vendem produtos de lojistas internacionais, como itens de moda, brinquedo e acessórios. Mas alegam que trazem menos volumes ao país do que as concorrentes estrangeiras, e a política de frete grátis nessas compras é mais restrita. Ainda dizem que utilizam sistemas para tentar identificar itens falsificados. Também existem intermediadores nacionais, com lojas próprias em alguns marketplaces locais e estrangeiros, que prometem fazer a chegada da compra até a casa do cliente. Esses negócios também vêm acendendo sinal de alerta no IDV, dizem fontes.

O documento do instituto calcula uma evasão fiscal de R$ 19 bilhões a R$ 20 bilhões na venda de lojistas internacionais em 2020 – 80% a 90% deles são da Ásia. Nas redes brasileiras, essa evasão varia de R$ 4 bilhões a R$ 5 bilhões. Foram 47 milhões de pedidos de brasileiros a lojas internacionais, intermediadas por “marketplaces” em 2020, diz o documento. É como se um a cada cinco brasileiros tivesse feito uma encomenda no ano.

Para plataformas estrangeiras, a questão é comercial. “Elas [brasileiras] estão assim porque estão perdendo venda e, num ambiente de consumo mais difícil, não têm acesso à base de ‘sellers’ [vendedores] competitivos que os outros têm. Porque há lojistas que vendem itens baratos e dentro da lei, pois têm uma estrutura de custos lá fora menor do que no Brasil”, diz o diretor de relações com mercado de um site chinês. “Nós estamos trazendo aos brasileiros milhares de lojas que trabalham corretamente. Há produtos ilegais que passam pelos controles? Há, mas existe um trabalho para melhorar isso”.

O Goldman Sachs estimou, em recente relatório, que a Shopee deve chegar a 20% de participação no mercado brasileiro on-line em 2025 (estaria hoje em “um dígito alto”). Outros relatórios de analistas vêm destacando o Mercado Livre como o maior competidor de Magazine Luiza, Americanas e Via.

Procurado, o Mercado Livre diz que apoia ações que inibam a entrada de produtos piratas e falsificados, e que investiu US$ 100 milhões em tecnologia de “machine learning”, que auxilia na análise de dados e identificação de irregularidades. Ainda afirma que só 5% dos lojistas da sua base não são formalizados. “Nós formalizamos 135 mil novos empreendedores pequenos desde a pandemia, e isso é mais [do que o total de lojas dos associados] do IDV. Então geramos renda e emprego”, afirma Ricardo Lagreca, diretor jurídico do Mercado Livre no Brasil.

Segundo ele, o grupo tem informatizado a estrutura de controle para identificar “o máximo possível” de lojistas e produtos. “Cerca de 95% das baixas que fazemos já são automatizadas”. O Mercado Livre vem reforçando, nos bastidores, dizem fontes, que não pode ser comparado a plataformas sem estrutura de distribuição local e que não geram emprego nem pagam tributos. O Mercado Livre não se vê como operação estrangeira.

Segundo o diretor, foram recolhidos R$ 1,2 bilhão em tributos pelo grupo em 2020, e neste ano será “perto do dobro”. Pela plataforma, passaram R$ 48 bilhões (em valor transacionado) no país. A empresa disse, no ano passado, que janeiro de 2020 a julho de 2021, um programa interno de proteção às marcas permitiu a exclusão de cerca de 30 milhões de anúncios irregulares.

Três advogados especializados em lei antitruste, ouvidos pelo Valor, entendem que, se as redes locais alegarem concorrência desleal, isso é tema tutelado pela Lei de Propriedade Intelectual, de 1996, “ou seja, é algo no âmbito civil ou até criminal, e não no Cade”, diz um ex-conselheiro. “Você pode dizer que é uma infração à ordem econômica dentro da ideia mais ampla, como define o artigo 36 da lei que estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência. E alegar que a sonegação gera uma assimetria de condições competitivas e desequilíbrio do mercado. Mas o Cade já deixou claro, em vários momentos, que não avalia matéria tributária”, diz um advogado especializado na área. Procurado, o Cade não se manifestou.

Grupos locais e plataformas estrangeiras acumulam divergências há anos, que ficaram mais explícitas em 2019, quando o setor discutiu um guia de autorregulação, com intermediação direta da Senacon. Nesse debate, negócios sediados fora do país foram contra a responsabilização das plataformas por anúncios de produtos falsificados, alegando liberdade de expressão. Shopee, AliExpress, OLX, Wish, Shein não aderiram ao guia. O Mercado Livre aderiu em 2021 e segue orientações do guia.

O guia atribui a responsabilidade pela aplicação dos direitos de propriedade só às empresas donas dos produtos e marcas. O IDV era favorável à corresponsabilidade, e a divergência rendeu reuniões tensas entre as partes em 2019. No dia 23 próximo haverá uma reunião no CNCP e a ideia é apresentar o seguinte: aqueles que não atuarem seguindo recomendações do guia, terão que deixar o guia.

A Shopee diz em nota que tem“ medidas de triagem proativa” para identificar violações e “fornece procedimentos” para que donos de marcas peçam remoção de infrações. Fala que “está comprometida em ajudar as pequenas e médias a crescer e prosperar [no mercado] on-line”. Diz que mais de 85% das suas vendas são de vendedores locais, que a venda de itens falsificados ou que infrinjam a propriedade intelectual é proibida e exige que vendedores sigam leis locais. “Nossa equipe no Brasil atende mais de 1 milhão de vendedores locais registrados”, diz.

A Shein afirma que “opera e continuará operando em conformidade com todas as leis locais dentro das [suas] operações comerciais”. Wish não respondeu aos contatos.

A OLX relata que auxilia no desenvolvimento do país e disponibiliza um espaço a usuários com respeito aos termos e condições de uso, e com negociação direta entre vendedor e comprador. Afirma que há anúncios gratuitos e sua receita advém de espaços opcionais de destaque das ofertas.

Ainda informa que apoia iniciativas que promovam um ambiente saudável de concorrência e medidas que auxiliem no combate de práticas ilícitas. E entende que sempre há melhorias que podem ser implementadas no setor e no ambiente legislativo. A OLX diz que o IDV tem papel importante nesse aprimoramento e que está à disposição para uma discussão com o instituto.