Luiza Trajano: “O empresário, hoje, ou ele atua socialmente ou ele vai ficar para trás”
Luiza Helena Trajano, conselheira do IDV, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza relembra trajetória, detalha estratégias contra crises e conta sobre sua relação com o público gaúcho hoje afetado pelas enchentes
Rafael Vigna, Zero Hora – Porto Alegre-RS – 25/05/2024
Quando a menina Luísa Trajano, que brincava na loja de presentes da família, percebeu que aquilo seria o seu propósito de vida?
Quando você tem família com loja, e quem tem sabe, a gente se envolve. Chega o fim do ano, o Natal, e a gente acaba ajudando. E, principalmente, sou uma pessoa que nasci com a mãe trabalhando. Já nasci atendendo em um balcão. Meus filhos também nasceram no balcão. Com 12 anos, o que eu queria era dar presente, porque sou filha única e minha tia (Luiza Trajano Donato, a fundadora da primeira loja da rede) também não teve filhos. Eu queria dar presente para a família. E tive uma mãe com muita inteligência emocional. Ela falou: “Quer dar presente? Trabalhe firme que no fim do ano você vai conseguir”. Então, com 12 anos, fui trabalhar de vendedora na única loja que a gente tinha em Franca (SP).
Você se saiu bem?
Sim. Gostei de vender. À época, minha tia fez a minha primeira poupança com o que eu ganhei. Foi legal, porque depois os meus primos também quiseram trabalhar. Depois, meus filhos e, por fim, muitos anos se passaram e minha neta, quando fez 12 anos, também quis trabalhar para comprar presente para a família. Costumo dizer que você nunca sabe até onde uma atitude legal pode inspirar as pessoas.
Você sempre fez muitas coisas ao mesmo tempo?
Com 17 anos, eu fui fazer faculdade (de Direito) à noite e trabalhar definitivamente. Comecei como encarregada e vendedora. Lidar com o consumidor foi a grande faculdade que tive. Foi ali que aprendi o que é empatia. É trocar de papel com outro, entrar no mundo do outro. Casei com 23 anos, e em três anos e meio tive três filhos (Frederico, Ana Luiza e Luciana). Como venho de uma família em que a mulher já trabalhava, não tive muito aquela pergunta: “Nossa! Como é que você vai largar os filhos para trabalhar?”. Na minha época, minhas colegas não costumavam trabalhar cedo, iam fazer faculdade. Ser atendente de loja também não combinava muito com a ideia de ser uma pessoa que estuda e tudo mais. Fui uma das primeiras. Não ter vergonha de assumir aquilo de que eu gostava também me ajudou muito.
Como foi conciliar a condução de uma empresa que se tornou uma das maiores varejistas do país?
Em 1991, assumi a rede por direito, mas já atuava como gerente comercial, já cuidava de layout, de tecnologia, já ia atrás de computadores, de birô. Na década de 1980, pus o primeiro computador, coisa que era difícil no varejo. Eu já conduzia isso, mas tinha minha família, que é muito boa, a gente sempre combinou muito, e minha tia era uma grande empreendedora. Não era tão boa de gestão, mas era uma das melhores empreendedoras que já vi. A empresa foi se expandindo naturalmente, porque nós tomamos uma decisão: a gente quer crescer. E, quando você quer crescer, você paga o preço também. Auditamos a empresa em 1995, por uma auditoria internacional, e fiquei com o cargo de CEO. Sempre tivemos uma governança bem clara.
Isso em um cenário basicamente masculino, dominado pela figura do homem executivo, empresário… Quando você percebeu que se tornou uma referência para o empreendedorismo?
Muita gente me faz essa pergunta, mas não houve um momento de virada. A gente foi aproveitando, primeiro crescemos em Minas Gerais, porque não tínhamos tamanho para enfrentar os grandes da época em São Paulo. Aproveitamos a oportunidade em cada cidade. Sempre procuramos entender o local e resgatar a cultura. A gente entrou no Rio Grande do Sul antes do que na capital de São Paulo. Crescemos, como diz o mineiro, pelas beiradas, e ganhamos experiência. Isso foi importante. Foi fundamental comprar as Lojas Arno no RS, com 50 lojas. A gente procurou a rede que tinha a mesma cultura da nossa. Respeitar a cultura do Estado foi muito importante, ficamos muitos anos nos chamando Lojas Arno, porque era uma rede que tinha 50 anos. Como é que você não vai levar isso em conta?
Lidar diretamente com o consumidor final foi a grande faculdade que tive. Foi ali que aprendi o que é empatia.
Foi diferente entrar no Rio Grande do Sul?
Como a gente sabia que o gaúcho é muito apaixonado pelo seu Estado, a gente ficou muito tempo com as Lojas Arno. Foi a Hebe (Camargo, apresentadora) que falou: “Agora a Loja Arno virou Magazine Luiza” (em uma publicidade na TV), mas foi um longo tempo até isso. A gente tem um rito, toda segunda-feira, e o RS é o único Estado em que nós cantamos, além do hino nacional, o hino do Estado. Tem aquele “foi o 20 de setembro”. A gente canta porque sabe e respeita muito a cultura de cada Estado. Eu só ainda não consigo tomar chimarrão (risos). Bem que tentei, porque, quando a gente tem eventos, nossos gerentes regionais do Sul vêm todos com o chimarrão na mão.
Você passou pelo cenário de hiperinflação, na década de 1980, em que o acesso ao crédito não era para todos, mas, no início dos anos 2000, quando o cenário permitiu uma economia voltada para o consumo, o varejo foi potencializado. Isso foi fundamental para o crescimento da rede?
Há duas coisas aí. A primeira é que nós aproveitamos a crise para crescer. Minha tia sempre falava: “Crise é uma questão de oportunidade”. A gente aproveitou para comprar algumas redes para crescer. Nunca nos focamos na crise, e sim nas alternativas. Segundo: quando o juro está muito alto, o crédito fica restrito. Um país em desenvolvimento vive de duas coisas: crédito e renda. A renda vem do salário, e o crédito é importante para 60% da população, que é de classe mais baixa. Então, depende do crédito. Quando você tira essas duas coisas, como aconteceu no pós-covid, é penoso. Durante a pandemia, se achou que haveria uma catástrofe, fechamos as 1,4 mil lojas no país, ficou todo mundo assustado, mas já tínhamos 50% da venda no digital. Conseguimos redirecionar, e não só nós, mas a maioria das pessoas. O brasileiro é muito criativo, se digitalizou, e nós tivemos um crescimento três vezes maior durante a pandemia. Depois, é natural você ter um recesso desse crescimento, principalmente, nos artigos, que venderam muito.
Esse recesso chegou acompanhado de juros altos e inflação. Como foi para contorná-lo?
Juro alto num período, eu era totalmente a favor, mas um juro que era de um digito e passou para dois foi muito agressivo. Chegou num período em que eu fui uma das vozes que começaram a dizer (para o Banco Central) que a taxa era muito alta e que tinha de dar um sinal, porque não estava tendo inflação. Inflação é quando falta produto e todo mundo começa a se aproveitar e cobrar mais caro. A recessão, para o varejo, veio pós-covid. Teve segmento que sofreu muito, como o de eventos, o turismo, mas no varejo as pessoas começaram a usar a internet para vender. Nós criamos o parceiro Magalu. Apareceram mais de 600 mil pessoas vendendo para nós, de suas casas, como vendedores externos, só que digitais. E a gente já estava mais preparado para isso. Depois teve realmente uma recessão grande, principalmente do varejo, empresas tiveram problemas, e isso nos afeta. Você não pensa que quando um tem problema é bom; é muito ruim para o varejo, porque o crédito aperta. O varejo é uma área em que você ganha no volume, você não ganha muito individualmente.
Foi o pior momento da trajetória da empresa?
O Magazine Luiza, mais uma vez, enfrentou e saiu da crise. Já enfrentamos na época em que o ex-presidente Collor tirou o dinheiro de todo mundo (confisco da poupança, em março de 1990). Passamos por isso sem capital de giro, e sei que os pequenos, os médios empresários estão lendo isso. Eles também sabem que não é fácil não ter capital de giro. Passamos por outros episódios, mas nunca atrasamos salários, nunca ficamos devendo, porque costumo dizer que o fluxo de caixa é importantíssimo. Tem duas coisas que não podemos perder: a venda, que é o combustível para tudo, em qualquer negócio, e o fluxo de caixa, que é o que você tem que ter para conseguir passar por todas as crises.
Empresas gigantes, como a sua, nesses momentos também precisam ter uma preocupação que vai além do lucro? Qual é o papel das políticas afirmativas para a rede que, em 2020, inovou com o primeiro programa de trainee só para pessoas negras no país?
É bem lógico. Eu nasci assim e desde menina tenho o propósito de combater a desigualdade e gerar a consciência da igualdade. Nós somos um país totalmente diverso. Temos 52% de mulheres e 52% de negros, não há como você viver num país sem pensar nisso. Estamos há 26 anos entre as cinco melhores empresas para se trabalhar, mesmo com os anos difíceis. Agora, temos um divisor de águas, que é o ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês). Em 2011, quando entramos na Bolsa, eu saía falando de igualdade, de diversidade, de educação. Nós temos um programa de educação com bolsa de estudo. Não é um programa de retenção de talentos. Só que aqui todo mundo ganha conforme o lucro da empresa. Tem de dar lucro, aqui não é uma instituição que dá para os outros, nós damos a vara para pescar mesmo, para todos. Tem uma porcentagem do salário que é amarrada ao resultado. A educação é direito de todos, ela transforma.
E quando a educação não chega para todo mundo?
Aí o papel do empresário é muito forte em políticas públicas, porque o que muda um país são políticas públicas. A gente montou o Instituto de Desenvolvimento do Varejo (IDV) para estudar o setor. Tenho um grupo com 125 mil mulheres. É uma instituição totalmente sem fins lucrativos, que tem em Porto Alegre, em Caxias do Sul. São mulheres de todos os níveis, a gente luta por 20 causas, sendo a principal trabalhar políticas públicas, para que a gente possa ter lei para dar educação, saúde e moradia para todos. O empresário, hoje, ou ele atua socialmente ou vai ficar para trás. O consumidor quer uma empresa que respeite os negros, que eu não trate mal uma pessoa por ser de sexo diferente. Você pode ver: se uma pessoa com cinco seguidores filmar algum maltrato a qualquer uma das diferenças, em pouco tempo já viralizou o nome da empresa. O ESG veio mudar isso.
Você sempre argumenta que a diversidade entre os funcionários é fundamental para a inovação. Na inovação tecnológica, a transformação trazida pela inteligência artificial (IA) vai mexer com muitos aspectos. Você inclusive foi vítima de um deep fake construído por IA. Como você se prepara?
O digital é uma cultura, não é um software, um aplicativo, um hardware. É uma cultura. Por outro lado, há leis, normas, e a gente também vai ter que controlar esse avanço. A IA vai trazer muito benefício, mas se fizeram uma peça usando a minha voz, prometendo algo como se fosse eu a prometer, isso tem de ser enquadrado. Se não tiver como enquadrar, vai ser difícil. Quando saiu o computador, todo mundo achou que tudo ia se acabar; quando começou a internet, mesma coisa, e assim também quando começou a TV, com todo mundo achando que a rádio ia acabar. Eu adoro rádio. Não acabou, pelo contrário. Agora vocês (a Zero Hora) estão fazendo 60 anos em pé. A questão é você aceitar as mudanças e se adaptar a elas. Nossa empresa não nasceu digital, mas consegue concorrer com os grandes players que já vieram digitais. Isso porque nós aceitamos que o varejo não ia ser igual e que a gente precisava se adaptar. A IA realmente vai mudar muita coisa. Os procedimentos, as normas, isso ela vai fazer por nós. O importante é a gente, as empresas e os profissionais, entendermos e nos adaptarmos. Para mim, o que vai ter valor é o trabalho estratégico e o que trabalha o consumidor final.
Qual foi sua sensação ao ver aquele anúncio falso prometendo coisas aos clientes com a sua voz?
Conseguimos passar bem por aquilo, porque logo percebemos o problema e já avisamos de imediato que era mentira. A gente agiu muito rápido. Em compensação, quando a gente fez o programa de trainee só para pessoas negras, teve muita gente falando que não ia comprar mais no Magazine Luiza por causa disso. Temos um departamento que monitora os movimentos nas redes, para que, rapidamente, a gente faça os desmentidos e aja com respostas.
O digital é uma cultura, não é um software, um aplicativo, um hardware. É uma cultura. Por outro lado, há leis, normas, e a gente também vai ter que controlar esse avanço.
Você já citou que é “a rainha dos memes”. em 2014, seu nome ganhou projeção em uma corrente de internet que envolvia um embate com Diogo Mainardi no programa Manhattan Connection, sobre a inadimplência no varejo…
Ele falou que a inadimplência havia crescido, eu sabia que não e falei que poderia até mandar um e-mail, demonstrando isso. Nada de mais. O problema é que ele disse: “Me poupe, não precisa me mandar e-mail”. Isso foi em um domingo, e na segunda-feira as principais manchetes indicavam que a inadimplência tinha caído. E eu nunca mandei nada para ele. Depois eu até queria ligar, mas meu assessor não deixou. Me arrependo de não ter ligado. Só na terça-feira é que me manifestei. Eu tinha só Twitter, não tinha nem Instagram na época. Agradeci pela porção de mensagens que recebi por participar do programa, mas o que criaram, já naquela época, no meu nome, as cartas enviadas para o Mainardi, uma onda de raiva contra ele… Isso não foi legal.
No digital, você esteve um passo à frente quando laçou a primeira atendente virtual. Em 2022, a Lu foi considerada a influenciadora digital mais relevante do mundo, superando a Barbie e a Minie Mouse. como estão os planos para ela com a IA?
É o que digo para os pequenos e médios empreendedores: começa fazendo. Não tem esse compromisso de ser perfeito. Vai fazendo e vai mudando, se precisar. O digital te dá essa condição de desenvolver. A Lu já ganhou dois prêmios em Cannes. Ela é um fenômeno, que nasceu com a meta de humanizar a internet em 2001. Por isso, ela fala que não está bem, pede desculpa, vai em passeata gay, vai fazer exame de revisão, vai para programa de televisão. É impressionante o carinho que a população tem com ela. Sabe que ela é virtual, que não é uma pessoa, mas ela é um canal que precisa ser humanizado, que é o da venda pela internet. E agora a IA está servindo muito para a Lu, porque ela pode fazer ainda mais coisas.
De que maneira tem sido feita a gestão dos efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul, tanto os pessoais, de funcionários, quanto os logísticos e de operações, e quais impactos podem ser esperados?
Eu sei que o Rio Grande do Sul está vivendo um momento muito difícil. Nós, do Magalu, do Grupo Mulheres do Brasil, estamos com vocês desde o primeiro momento. Infelizmente, devo dizer, adquiri alguma experiência de enchente – lógico, nada parecendo com essa. Por isso, a gente agiu rapidamente. Não tem orçamento, mas tem que ter essa verba já. E eu aprendi que a primeira coisa que a gente dá é colchão, alimentação pronta para os abrigos e água. E até pedir para não ficar demandando muita roupa, porque senão não tem nem onde colocar. É lógico que, vindo o frio, tem de ter cobertor. Então nós agimos muito rápido com isso. Muita gente do Mulheres do Brasil ajudou a montar três abrigos para as mulheres em 24 horas. A gente tem um centro de distribuição no Estado que graças a Deus não foi inundado, mas demorava a chegar aos lugares por conta da infraestrutura abalada. Acho que só três ou quatro lojas foram totalmente tomadas. Mas a nossa equipe ficou muito mal, assim como todos os brasileiros estão. Eu viajei agora o mundo inteiro, e este é o primeiro acidente que nós temos desse tipo e dessa magnitude no Brasil. Tenho certeza de que a população inteira, do país e do mundo, se comoveu com esse povo tão trabalhador, tão sério, tão disciplinado que é o povo gaúcho. Nós tomamos também, como Magalu, medidas para os nossos funcionários, várias medidas para mitigar o impacto das cheias.
Que mensagem esse episódio deixa?
A mensagem que quero deixar é que tenho certeza de que o Rio Grande do Sul, com a ajuda de todos, governo federal, estadual, os municípios, junto às autoridades, aos empresários e à população de modo geral, vai sair dessa muito fortemente. É um povo guerreiro, é um povo que sabe fazer as coisas, é disciplinado. Eu aprendo muito desde que a gente comprou as Lojas Arno no Sul. Devo muito aos gaúchos e por isso estou aí de corpo e alma. E, se Deus quiser, nós todos juntos vamos formar uma grande corrente, unidos pelo Rio Grande do Sul, para podermos, em um tempo recorde, refazer esse Estado. A gente está muito sentido, mas muito esperançoso. Tenho certeza de que vamos sair bem de tudo dessa, porque nós estamos juntos.
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