Apesar de crise dos gigantes, varejo brasileiro vive bom momento em 2024

Apesar de crise dos gigantes, varejo brasileiro vive bom momento em 2024

Os anos de 2023 e 2024 têm sido marcados por profundas crises de gigantes do varejo nacional. Durante este período, empresas como Americanas, Casas Bahia, Tok & Stok, Super – mercados Dia e Polishop se alternaram entre pedidos de recuperação judicial e extrajudicial e um amplo fechamento de lojas. Tal cenário, somado a uma desvalorização ampla das ações das 27 empresas do setor listadas na bolsa de valores – movimento que teve seu pico no último mês de novembro, com queda média de 9,05% –, pode fazer parecer que há uma crise generalizada no ecossistema do comércio brasileiro.

Ao observarmos o panorama geral, no entanto, chegamos à conclusão de que há um descolamento entre a situação dos grandes varejistas e a performance do setor de maneira geral. Dados do IBGE mostram que as vendas do varejo fecharam o 1º trimestre de 2024 com alta de 2,5% no comparativo com o mesmo período do ano passado. O mesmo levantamento revela, ainda, que o resultado trimestral foi positivo para sete atividades dentro das 10 pesquisadas nos dois índices.

“As vendas de bens duráveis mostraram bons resultados, após um 2023 mais fraco, com elevação de 4,2% para vestuário, de 0,3% para eletrodomésticos e de 4,3% para veículos, considerando a série com ajuste sazonal. Além disso, as vendas de bens essenciais seguiram em patamares elevados, ajudando o varejo, com elevação de 1,0% nas vendas de supermercados e de 5,6% para artigos farmacêuticos”, detalhou Isabela Tavares, economista e analista da Tendências Consultoria, antes de complementar: “No período, as vendas foram beneficiadas pelo mercado de trabalho aquecido, melhora das condições financeiras em relação aos níveis do ano anterior e ao pagamento das precatórias”.

Ao ponderar sobre os fatores que melhoraram o poder de com – pra da população, estão, segundo o assessor econômico da FecomercioSP, Fábio Pina, os patamares de renda e emprego dos brasileiros – refletidos no crescimento de 6% da massa salarial do país ao longo dos três primeiros meses do ano. Diante de tais indicadores, que mostram um desempenho positivo do consumo não apenas no apanhado geral, mas também na maior parte dos segmentos que formam a fotografia do todo, questionamos Pina sobre as razões que têm causado tamanho descolamento quando falamos dos grandes varejos.

Comportamento

Em primeiro lugar, o economista reforçou a necessidade de analisar cada uma das situações individualmente. Depois, fazendo um exercício de análise setorial, apontou a dificuldade das empresas em acompanhar as mudanças sociais e o novo comportamento dos consumidores como fator predominante. “Há uma mudança muito relevante no modelo de negócios de varejo, com o consumidor ferramentas, em que os vendedores explicam até o que e como aplicar o item para atingir os objetivos do cliente”. Em análise correlata, outro especialista ouvido pela nossa reportagem, o professor de MBA da FGV, Roberto Kanter, apontou que este ambiente de mudanças tem sido agravado por uma concorrência que chamou de desleal vinda de players do exterior, tais como a Shein e a Shopee. “É complicado porque esses concorrentes terminam pagando uma tributação maior com o mecanismo da isenção de impostos das compras até US$ 50”, analisou. Sobre este assunto, vale pontuar que corre no Congresso Nacional a pauta para suprimir a isenção de impostos mencionada pelo professor da FGV, pauta que tem amplo respaldo das comunidades varejistas, encabeçada por suas instituições representativas como o IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo). Após um acordo entre o Legislativo e o Governo Federal, em 28 de maio a Câmara aprovou projeto que acaba com a isenção para tais compras, que passarão a cobrar imposto de 20%.

Economistas destacam resiliência do varejo de autopeças

Falar sobre varejo em sentido amplo implica necessariamente o uso de uma “licença poética”. Afinal, cada segmento possui características singulares de funcionamento, sobretudo pelas diferentes relações que estabelece com o mercado consumidor. Diante desta heterogeneidade, convidamos os especialistas para analisarem a atual conjuntura por meio da ótica do varejo ampliado, com destaque para a venda de peças e partes.

Para o economista da ACSP, Ulisses Ruiz de Gamboa, a discussão começa com uma reflexão que se popularizou nacionalmente durante a pandemia da covid-19: quais segmentos do varejo são considerados essenciais?

Isso acontece, segundo Gamboa, pois os momentos positivos vividos pelo varejo a despeito das incertezas conjunturais – como uma taxa de juros básica ainda elevada – têm sido puxados pelo aumento do consumo de itens como alimentação, farmácia e artigos de uso pessoal. “A compra de eletroeletrônicos ou de itens mais caros como veículos ou vestuário tende a ser mais prejudicada porque se trata, geralmente, de uma compra associada ao crédito, que ainda tá bastante caro”, analisou o economista. Ao varejista de autopeças que se pergunta sobre o seu lugar neste ambiente em que o consumidor têm se visto na necessidade de priorizar um segmento ou outro cabe fazer um exercício de memória. O que tem acontecido nestes períodos de aguda desaceleração das vendas de automóveis zero km? Ora, um efeito rebote positivo no aftermarket. Essa inteligência coletiva dos profissionais da reposição automotiva foi reverberada na análise de Isabela Tavares, da Tendências Consultoria. “As vendas de autopeças tendem a sentir menos que as vendas de veículos novos (considerando um ambiente sem políticas de preço que beneficie algum dos lados) pela importância que o mercado de reposição tem para as vendas de autopeças. Assim, as vendas de autopeças se favorecem da manutenção dos carros que já estão em uso e das vendas de usados que requerem manutenção posterior, limitando as perdas de um cenário mais fraco para vendas de novos”, afirmou a especialista.

Segundo semestre tem perspectiva otimista, mas inflação é ameaça

Mais do que olhar para o que já se passou na primeira metade do ano, o fato de estarmos a menos de 30 dias para o fim do semestre nos convida a refletir sobre as perspectivas para os varejistas de julho em diante. Na opinião dos especialistas ouvidos pelo Novo Varejo Automotivo, o mesmo cenário de boa taxa de empregabilidade e aumento da renda que marcaram os bons números do primeiro trimestre deve impulsionar resultados positivos até o fim de 2024. “Para o segundo semestre, as vendas devem voltar a mostrar maior dinamismo, em função da expectativa positiva para os condicionantes da demanda. O mercado de trabalho ainda aquecido e melhores condições financeiras atuam de forma positiva ao consumo, contribuindo para os segmentos de bens duráveis mostrarem melhor desempenho neste ano”, analisou Isabela Tavares, da Tendências Consultoria.

Em confluência com a colega, Fábio Pina, da FecomercioSP, afirmou que o cenário indica uma continuidade do crescimento do consumo. Entretanto, ele fez um alerta para uma provável diminuição do ritmo desta alta já a partir da segunda metade do segundo trimestre. “Essa desaceleração – que não quer dizer queda, mas menor crescimento – é natural, dada a base de comparação e a grande – e sempre crescente – grade de opções que os consumidores têm para gastar recursos: hoje, um lojista não concorre apenas com outro do mesmo setor. Ele concorre com outros lojistas de outros setores, plataformas de vendas online, lazer das famílias, viagens, streamings, planos de internet etc. Isto é, eventualmente o cliente não deixou de consumir, mas reduziu o consumo na sua loja”, apontou.

Projetando os próximos sete meses por uma ótica mais conectada aos desafios que a conjuntura econômica deve trazer ao varejo, o presidente do Ibevar, Claudio Felisoni, indicou uma possível alta inflacionária como o maior ponto de preocupação. Segundo ele, esse problema só não tem corroído ainda mais a capacidade de compra da população pelo ‘pulso firme’ do Banco Central que, resistindo às pressões do Governo Federal, manteve a taxa de juros na casa dos 10% como antídoto para a inflação. “Foi exatamente essa medida que permitiu que uma taxa de inflação de mais de 10% ao ano convergisse para 3,7% ao ano”, colocou, antes de demonstrar preocupação com a condução da política fiscal por parte da atual equipe econômica. “Ao relativizar a importância do controle do déficit fiscal, o governo aumenta a necessidade de uma política monetária mais restritiva, isto é, taxas básicas mais elevadas. Certamente o problema do déficit, que já era preocupante em razão da não supressão de gastos, tornou-se ainda mais sério com a necessidade urgente de socorrer o Rio Grande do Sul”. Somando-se à análise de Felisoni em relação às principais ameaças para o ritmo de consumo dos brasileiros e, por conseguinte, do desempenho do setor varejista, o professor da FGV, Roberto Kanter, destacou os efeitos negativos do alto endividamento das famílias – que, de acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), conduzida pela CNC, cresceu pela segunda vez consecutiva no último mês de maio, atingindo 78,5% dos lares brasileiros.

Lucas Torres | Novo Varejo Automotivo, 4/6/2024
Imagem: AI generated / Creative Commons 4.0